Uma a cada cinco pessoas que vão aos hemocentros da rede pública é considerada inapta a doar sangue no Brasil. É o que mostra um levantamento feito pelo G1 nos 32 hemocentros coordenadores, espalhados pelas 27 unidades federativas.
De janeiro a agosto deste ano, 2.036.138 compareceram para doar sangue em um dos mais de 200 pontos de coleta da rede pública. Desse total, 21,7% dos candidatos (440.968) foram considerados inaptos para a doação.
Esses candidatos foram reprovados nas etapas que antecedem a coleta de sangue: a pré-triagem e a triagem. Primeiro, a pessoa precisa passar pela fase em que são checados a pressão arterial, a temperatura e se o doador voluntário tem anemia e peso mínimo de 50 quilos.
Depois, na triagem, um médico faz perguntas ao candidato a doador de sangue. O conteúdo varia de comportamento sexual a uso de medicamentos e viagens recentes. O candidato não pode ainda ter dormido poucas horas na noite anterior nem ter tido perda de peso nos últimos meses, por exemplo.
O levantamento do G1 coletou dados de todos os hemocentros coordenadores, que respondem pela rede pública do país. Apenas o Hemocentro Coordenador de Palmas (Hemoto) não tem os números completos e, por isso, a taxa de inaptidão no estado não pôde ser verificada. Não estão incluídos na conta os dados da rede particular.
Alagoas é o estado com mais candidatos considerados inaptos para a doação de sangue. De janeiro a agosto de 2017, foram 16.574 comparecimentos e 10.725 bolsas de sangue coletadas. Uma a cada três pessoas não conseguiu doar sangue.
Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas afirma que "o protocolo do Ministério da Saúde é seguido à risca pela Hemorrede de Alagoas e os pré-requisitos para doação são os mesmos [de outros pontos de coleta]". A assessoria de imprensa ainda destaca que o estado fez quatro campanhas para "conscientizar a população sobre a importância da doação".
Por outro lado, o Mato Grosso do Sul apresenta a menor taxa de candidatos considerados inaptos para a doação. Apenas 15% das pessoas que foram aos hemocentros não conseguiram fazer o procedimento.
O Brasil ainda não tem doadores de sangue suficientes para cumprir a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde). A entidade propõe que o número de doadores voluntários seja de, no mínimo, 2% da população nacional.
Para esse ideal ser alcançado, o Brasil precisa de 4,15 milhões de doadores de sangue nas redes privada e pública. A estimativa mais recente do Ministério da Saúde (de 2015) indica que 1,8% da população brasileira seja doadora de sangue (contando as duas redes).
Para alcançar o mínimo sugerido pela OMS, o país precisa que mais 410 mil pessoas passem a doar sangue.
O G1 pediu os dados de comparecimento e de bolsas de sangue coletadas em 2016 e 2017 para o Ministério da Saúde via Lei de Acesso à Informação. A pasta diz, no entanto, que os números mais recentes são de 2015.
Uma bolsa de sangue pode salvar quatro vidas. O tamanho da bolsa de sangue varia de 400 ml a 450 ml, dependendo do peso do doador.
O sangue coletado pode produzir até quatro componentes diferentes: concentrado de hemácias, concentrado de plaquetas, plasma fresco congelado e crioprecipitado.
O médico hemoterapeuta Leonardo Campos lembra que ainda não há substituto para o sangue. Por isso, a doação é a única forma de garantir transfusão em pacientes que passam por tratamento oncológico, que precisam de transplante de medula óssea, que sofreram acidentes e perderam sangue, entre outros.
O integrante do Hematologistas Associados afirma que cada hemocomponente tem uma função diferente:
concentrado de hemácias: serve para corrigir a anemia;
concentrado de plaquetas: serve para corrigir a quantidade de plaquetas (quando estão baixas) ou para fornecer plaquetas em pacientes com plaquetas que não funcionam corretamente (uso de determinados medicamentos ou alterações genéticas), o que auxilia o processo da coagulação, que impede o sangramento;
plasma fresco congelado: serve para corrigir os fatores da coagulação que atuam no controle do sangramento;
crioprecipitado: serve para corrigir determinados fatores com o fibrinogênio, que é importante no controle do sangramento.
Campos lembra que, com o aumento da expectativa de vida, há o diagnóstico mais frequente de doenças crônicas que podem necessitar transfusão de sangue, como o câncer.
Segundo ele, as vítimas de projéteis de arma de fogo também podem ter contribuído para a percepção de os hospitais precisarem de mais bolsas de sangue.
Doações espontâneas
A agente de saúde Adriana Gomes, de 45 anos, era uma doadora de sangue espontânea. Em 2006, Adriana descobriu que tinha epilepsia e precisou começar a tomar remédios para o tratamento da doença. A partir de então, ficou inapta para a doação de sangue.
Na época, a filha primogênita, Barbara Luzzen, tinha 15 anos e fez uma promessa. Começaria a doar sangue em 6 de agosto de 2009, quando completasse 18 anos.
“Eu cresci vendo a minha mãe doar sangue. Ela me explicou que era um ato de bondade e que a sensação de se sentir útil para alguém que nem sequer conhecia era uma das melhores coisas”, conta Barbara.
Barbara Luzzen e sua mãe, Adriana Gomes, são entusiastas da doação de sangue (Foto: Arquivo pessoal)
Aos 26 anos, a professora de português e redação conta que fará a próxima doação de sangue em 27 de novembro no Hemonúcleo de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. A campanha por causa do Dia do Doador Voluntário de Sangue, comemorado neste sábado (25), chamou a atenção de Barbara.
“Doar sangue é um ato consideravelmente simples para salvar uma vida. Um preço pequeno a ser pago, mesmo que seja por um desconhecido.”
A assistente social Edna Félix trabalha no Hemocentro de Roraima. Ela conta que os doadores que vão ao Hemoraima já têm um amigos ou parentes internados – são os chamados doadores de reposição. O ideal, lembra Edna, é que os doadores criem uma regularidade na doação de sangue.
“Só com a demanda espontânea a gente não consegue o número suficiente de bolsas de sangue. A gente manda e-mail, ofício ou visita as instituições para fazer parcerias. Normalmente a equipe da captação vai a universidades, empresas e igrejas”, afirma.
O Ministério da Saúde reforça que a população precisa criar uma “cultura solidária de doação de sangue”. Em nota, a pasta diz que as campanhas procuram difundir a importância do ato para atingir “populações variadas”.
Restrições
Para o hematologista Leonardo Campos, as razões mais comuns para a inaptidão são o uso de determinados medicamentos, a anemia e infecções, como resfriados.
Outro motivo para os candidatos serem considerados inaptos para doar sangue é o peso inferior a 50 quilos. O G1 fez uma busca pelos tweetsmais recentes sobre doação de sangue, e essa restrição foi uma das mais citadas.
“Poxa... Nem doar sangue eu posso, porque eu não tenho o peso necessário”, reclamou uma usuária do Twitter. “Preciso engordar 100 gramas para poder doar sangue. Deixa eu ir ali comer”, escreveu outra pessoa.
Em 2012 e 2013, a faixa etária do doador de sangue foi ampliada. Antes, o doador precisava ter de 18 a 65 anos. Atualmente, ela varia de 16 a 69 anos, sendo que a primeira doação deve ser feita obrigatoriamente até os 60 anos.
O menor de 18 anos precisa, no entanto, apresentar uma autorização de um responsável legal para doar sangue.
Eis os requisitos:
ter entre 16 e 69 anos;
ter peso igual ou superior a 50 quilos;
estar alimentado e ter evitado alimentos gordurosos nas 3 horas que antecedem a doação;
ter dormido pelo menos seis horas nas últimas 24 horas;
estar bem de saúde, sem gripe, resfriado ou febre há, no mínimo, 7 dias;
não estar em período de gravidez ou amamentação;
não ter tido uma gravidez há 90 dias (parto normal) ou 180 dias (cesariana);
não ter tido diarreia nos últimos 7 dias;
não ter ingerido bebida alcoólica nas 12 horas anteriores;
não ter feito tatuagem ou piercing nos últimos 6 meses (piercing na boca ou na genitália impedem definitivamente a doação);
não ter feito exames ou procedimentos com utilização de endoscópio nos últimos 6 meses;
não ter passado por cirurgia odontológica com anestesia geral nas últimas 4 semanas;
não ter tido relação sexual em que tivesse risco de doenças sexualmente transmissíveis nos últimos 12 meses;
não ter feito uso de drogas injetáveis;
não ter visitado regiões onde há surto de febre amarela nas últimas 4 semanas.
Malária
A diretora-geral do Hemocentro do Ceará, Luciana Carlos, afirma ainda que quem esteve em regiões onde há prevalência de malária precisa ficar um ano sem doar ou deve levar o resultado do exame da doença para mostrar que está apto para a doação. “Nem todo mundo que quer pode fazer a doação”, diz Luciana.
No Brasil, os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins fazem parte da região endêmica da malária. Quem mora nesses locais também tem o sangue obrigatoriamente testado para a doença.
Se a pessoa tiver tido a doença, ela precisa esperar 12 meses após o tratamento e a comprovação da cura. Quem tiver tido, porém, malária pelo plasmódio “Plasmodium malariae”, que causa a chamada Febre Quartã, ficará inapto definitivo para a doação.
Quando há alguma alteração no exame, lembra Luciana, o doador de sangue é chamado para refazer os testes, recebe orientações e pode ser encaminhado para outra unidade.
“A gente precisa falar com o doador e analisar se ele está inapto ou apto. Aqui no estado [Ceará] um pouco mais de 20% das pessoas que procuram o hemocentro não doam sangue. Alguns temporariamente, outros definitivamente.“
Gays e bissexuais
O Supremo Tribunal Federal começou a julgar em outubro a restrição de doação de sangue por homens que tenham feito sexo com outros homens nos últimos 12 meses. A retomada do julgamento depende do ministro Gilmar Mendes, que pediu vista em 26 de outubro.
Por enquanto, três ministros acompanharam o voto do relator, ministro Edson Fachin, e foram contrários à proibição. O ministro Alexandre de Moraes foi parcialmente contrário à norma da Anvisa e do Ministério da Saúde.
O julgamento foi originado de uma ação do PSB que critica a norma por ser “discriminatória”. Hoje, os hemocentros podem rejeitar doações de sangue de homens homessexuais e bissexuais ativos. O argumento é que eles fazem parte do “grupo de risco” para a transmissão do vírus HIV e de doenças como as hepatites B e C.
Bolsas de sangue
Os estados mais populosos são também os que mais conseguem bolsas de sangue e onde há mais pontos para a doação. De janeiro a agosto de 2017, foram 244.685 bolsas de sangue coletadas na rede pública de São Paulo.
Em Minas Gerais, o número ficou próximo a 200 mil bolsas de sangue. No Rio, registrou-se 120.680 bolsas. Em Pernambuco, foram quase 90 mil; na Bahia, 76.351 bolsas de sangue.
Acre, Roraima e Amapá, estados menos populosos, apresentam números mais tímidos de bolsas de sangue. O Acre é, porém, o estado que teve a maior queda no número de bolsas de sangue coletadas.
De janeiro a agosto de 2016, os pontos de coleta de sangue do Acre conseguiram 8.645 bolsas de sangue. No mesmo período de 2017, esse número caiu para 6.750. A redução foi de 21,9%. A assessoria de imprensa do Hemoacre foi procurada e não enviou nota sobre o caso.
Em seguida, aparece Alagoas, onde a queda no número de bolsas de sangue foi de 11,6%. De janeiro a agosto de 2016, tinham sido coletadas 12.134 bolsas de sangue. Nos mesmos meses de 2017, a soma foi de 10.725.
Em nota, a Secretaria de Estado de Saúde de Alagoas afirma que houve "um período de chuvas maior quando comparado com os anos anteriores, o que pode explicar a redução das doações voluntárias". Reforça, no entanto, que, a partir de agosto deste ano, o Hemocentro de Maceió teve o horário de funcionamento aos sábados ampliado como esforço para aumentar o número de bolsas de sangue.
O estado que apresentou o maior crescimento em bolsas de sangue foi o Rio de Janeiro. A rede pública registrou 108.859 bolsas de sangue de janeiro a agosto de 2016 e 120.680 no mesmo período de 2017. O aumento foi de 10,9%.
Em seguida, também com alta no número de bolsas de sangue, aparecem Paraíba (6,5%), Espírito Santo (5,4%) e Maranhão (5,2%).
No Brasil, houve um crescimento, mas pequeno: de 1.578.413 para 1.595.170 (1,1%).
Consciência social
O médico cardiologista João Pedroza de Oliveira, de 31 anos, fez uma lista com quatro promessas caso o Sport escape do rebaixamento e continue na série A do Campeonato Brasileiro. O primeiro item da lista de João é fazer três doações de sangue no Hemocentro de Pernambuco até o fim de 2018. Essa promessa pode ganhar força ou esmorecer neste sábado, quando o time enfrenta o Fluminense fora de casa, precisando ganhar para sair da zona da degola.
Segundo o Ministério da Saúde, os homens podem fazer uma doação de sangue a cada dois meses e, no máximo, quatro doações no ano; as mulheres, a cada três meses – no máximo, três doações no ano.
“Costumo fazer promessas quando estou tentando fazer algo difícil, principalmente com algo relacionado a futebol. A ideia é transformar a reza que deu certo em uma ação social positiva”, diz o cardiologista.
Formado pela Universidade Federal de Pernambuco, João lembra que chegou a conhecer as instalações do hemocentro naquela época. “Fazem um trabalho muito bom, com bastante organização”, lembra.
O médico fez quatro doações de sangue lá, embora admita que não tenha feito doações recentemente porque “a vida está muito corrida”.
Se o Sport continuar na série A, o médico ainda deve receber R$ 500 de uma aposta informal com um amigo. Esse dinheiro, conta João, será destinado para a ONG Grupo de Ajuda à Criança Carente com Câncer Pernambuco.
A subida no Morro da Conceição, destino de fiéis no feriado de 8 de dezembro, e as doações mensais à ONG Médicos Sem Fronteiras completam a lista.
Tecnologia
O estudante de análise e desenvolvimento de sistemas Renan Bastos, de 24 anos, criou com três amigos o site "HemoHeroes" para conectar hemocentros e doadores de sangue. A ideia é que os hemocentros consigam atrair mais doadores espontâneos, de acordo com o tipo sanguíneo para o qual há mais demanda.
Site "HemoHeroes" foi criado por estudante de 24 anos (Foto: Divulgação)
A versão inicial do site conecta o Banco de Sangue do Hospital São Lucas da PUC-RS, na capital gaúcha, com os usuários cadastrados. Na época do desenvolvimento do site, Bastos fez também a sua primeira doação de sangue e virou um incentivador da causa.
“Pensamos nos problemas e queríamos fazer algo para fomentar e trazer mais pessoas para doar sangue. Hoje há pouca campanha para a doação de sangue e é preciso sempre manter o estoque”, lembra o estudante.
Bastos trabalha nas horas vagas numa segunda versão do site. A ideia é melhorar a plataforma para encontrar parceiros. Para essa segunda missão, o jovem deve contar com a ajuda ainda de outros dois amigos para traduzir o site para inglês, espanhol e até japonês.
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