Alene Celestino de Araujo
Salvador - Bahia
Esta é uma das partes mais marcantes de toda a minha história. Existem feridas que nunca cicatrizam e, mesmo aquelas que cicatrizam, deixam marcas. Olhar para elas é o mesmo que reviver as dores que as causaram.
Eu não me lembro bem quando tudo começou, porque eu ainda era muito pequena, mas recordo-me que, por volta dos cinco ou seis anos de idade, meu pai era muito carinhoso comigo. Não tinha muito dinheiro, mas sempre comprava docinhos pra mim, às vezes me levava pra tomar sorvete e eu adorava, achava que ele era o melhor pai do mundo.
Um dia, quando estávamos sós, ele me chamou pra sentar no colo dele e começou a fazer perguntas, do tipo: “Você gosta de seu paizinho? Eu sou bonzinho pra você, não sou?”, ao mesmo tempo em que me acariciava de um modo “diferente”. Tudo isso ficou ainda mais fácil para ele, porque eu não tinha consciência do que estava realmente acontecendo. Ele dizia que esse seria nosso segredinho e sempre me agradava com novos docinhos.
Quando eu já tinha sete anos de idade, meu pai começou a fazer outros avanços. Ele nunca me batia, ao contrário da minha mãe, que me batia e, às vezes, também me privava de brincar com minhas coleguinhas.
Algumas vezes, meu pai me mostrava revistas pornográficas, dizendo que um dia eu também iria sentir vontade de fazer aquelas coisas. Ele também me contava das experiências sexuais que tinha com outras crianças – inclusive algumas que eu conhecia –, com mulheres e com minha mãe. Ele confiava muito em mim, apesar de eu ser uma criança.
Eu ficava observando os outros pais com suas filhas e ficava pensando: “será que todos eles fazem o que o meu faz comigo?” Eu achava que o que havia entre nós era uma espécie de amizade, cumplicidade. Acreditava que, quando eu pedisse a ele que não fizesse mais aquelas “coisas” comigo, ele aceitaria numa boa. Eu achava que aquilo tudo era uma brincadeirinha.
Um dia, me senti encorajada para dizer a ele que não queria mais que ele tocasse em mim. Ele ficou muito nervoso e começou a me perguntar se ele era um pai ruim, se me batia ou me tratava mal. Nessa mesma hora, eu comecei a chorar e fiquei muito confusa, mas mesmo assim disse que não. Ele respondeu que eu estava sendo má com ele.
Depois de fazer uma grande chantagem emocional que me deixou muito confusa, ele acabou aceitando, porém disse que minha decisão teria conseqüências. Nesse dia, eu fiquei muito feliz, mas logo depois, ele começou a ser frio comigo, me tratando com ignorância e me espancando com murros e pontapés, me batendo por qualquer besteira e, às vezes, até inventando motivos.
Certo dia, quando estávamos sós, ele me perguntou:
- É assim que você quer que seja? Pois é assim que será, daqui por diante.
Naquele dia, eu tive muito medo dele e não soube o que dizer. Apenas chorava, chorava muito. Então ele começou a me acariciar, enquanto eu ia me afastando, até que ele perdeu a paciência e saiu me arrastando da sala para o quarto. Ali mesmo, no chão, ele tentou abusar de mim, mas eu reagi e, pela primeira vez, tive uma atitude agressiva: eu o mordi com tanta força que ele se esquivou e me deu um murro na boca, quebrando um pedaço do meu dente da frente e partindo meu lábio.
Ele disse que iria esperar eu ficar um pouco maior para fazer sexo comigo, como fazia com minha mãe, pois dali a algum tempo, eu já teria meus namoradinhos e ele teria que ser o primeiro.
Eu pensava em contar para alguém, mas tinha muito medo e vergonha. Tinha medo de contar e de não acreditarem em mim, ou de terem uma conversa com meu pai e ele negar tudo. Então nada seria resolvido e ele ficaria muito mais bravo comigo. Também tinha vergonha porque, depois de tanto tempo sendo abusada, as pessoas iriam me condenar, dizendo que eu poderia ter gritado por socorro, fugido ou pedido ajuda antes.
Eu me comportava de maneira diferente das outras crianças: não brincava, não falava, ficava com o olhar vazio, como se olhasse para o nada. As pessoas começaram a achar que eu tinha algum problema mental, principalmente minha mãe, que sempre dizia que eu era doente e que não conseguiria passar da terceira série. Naquele mesmo ano, fiquei muito doente, com um principio de meningite, segundo os médicos. Por causa disso, fiquei muito tempo internada no Hospital Couto Maia, mais de seis meses. Tive então de fazer a terceira serie no ano seguinte. Eu não queria ficar boa, queria ficar morando lá no hospital.
Não vou entrar em mais detalhes, pois, além de não gostar de falar sobre isso, não daria para descrever tanto sofrimento e angústia numa simples folha de papel.
O pior foi quando descobri que minha mãe sabia de tudo o que estava acontecendo e, de certa forma, acabava consentindo. Foi o que me deixou ainda mais triste. A coisa ia ficando cada vez pior: eu era obrigada a fazer coisas que não queria e, quando reagia, era sempre mais doloroso.
Depois de muito tempo, com a ajuda de umas coleguinhas, consegui contar à nossa vizinha o que estava acontecendo comigo. Ela denunciou meu pai e ele foi preso. Depois disso, minha mãe ficou com muita raiva de mim e começou a me agredir constantemente. Ela também foi denunciada mas, dessa vez, por minhas professoras, que me viam constantemente cheia de hematomas.
Graças à ajuda dessas professoras, fui morar em um abrigo, onde sempre fui bem tratada e conquistei a confiança de todos. Lá estudei e me esforcei bastante, sendo a primeira menina a cursar a universidade. Fiz um curso de informática, porém dei um pouco de trabalho, já que tive sérios problemas de saúde, como depressão profunda e anorexia. Hoje faço acompanhamento com psicóloga e psiquiatra, tomo meus medicamentos direitinho e estou muito melhor.
Tenho vinte e um anos e estou prestes a me formar em Serviço Social na Universidade Católica do Salvador, que me deu uma bolsa integral. Sempre que posso, ajudo a instituição onde estou morando há quase oito anos. Pretendo atuar na área da infância e juventude, ajudando pessoas que, como eu, foram vitimas de uma sociedade tão injusta e desigual, que não respeita os direitos alheios.
Fonte: http://www.promenino.org.br/Ferramentas/Conteudo
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