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terça-feira, 13 de julho de 2021

Geraldo Amâncio: as lições de um mestre cantador de versos afiados

Mestre da Cultura, cantador, poeta, violeiro e escritor, Geraldo Amâncio rememora ao O POVO as trajetórias de 75 anos de vida e quase 60 de carreira.

📷Foto: Reprodução

Filho de Antônio Amâncio Pereira e Francisca Amâncio da Silva, Geraldo Amâncio Pereira rebentou ao mundo em 29 de abril de 1946 no Sítio Malhada de Areia, no Cedro. Menino, aprendia versos para apresentar às visitas e tocava violão depois da “dibuia” do feijão.

Por destino, sorte ou ação do sagrado - “para onde vou um anjo me acompanha ou já tá na frente” -, encaminhou-se para a lida da cantoria e da viola. Hoje, aos 75 anos, o cantador, violeiro, poeta, escritor e Mestre da Cultura Geraldo Amâncio é um dos artistas mais respeitados do Ceará, reconhecido como Tesouro Vivo da Cultura pelo Governo do Estado.

Com rica trajetória, que inclui participação em uma caravana que rodou o Brasil em plena ditadura demandando anistia irrestrita, o mestre segue afiado para opinar sobre temas sociais e políticos, produzindo recentemente estrofes que abordam a fome, a demora na vacinação no Brasil e criticam a mistura entre política e religião. Discorrendo ao O POVO sobre o início da trajetória, a influência do mestre Pedro Bandeira (1938-2021), as viagens pelo exterior, a importância do apoio à cultura, a poesia e a permanência da arte, o mestre destaca a importância da educação. “Tudo que tem que permanecer tem que passar pela escola ou ficar nos livros, senão fica sem raiz”, ensina.

O POVO - Na sua infância e adolescência, como era o contato com a arte? O avô do senhor, por exemplo, sei que era cantador.

Geraldo Amâncio - ive uma infância razoavelmente agradável antes de ir para a roça. Me criei, além de com meus pais e irmãos, com meus quatro avós. Tinha um núcleo fantástico. Meu avô paterno, Manuel Amâncio Pereira, foi um cantador amador. Cantava em batizado, casamento, essas coisas. O filho dele, por nome Amâncio Pereira Lima, meu tio, me ensinava umas quebras de verso - “perna fina / corredeira / na subida / da ladeira” - para eu dizer quando chegava visita na casa do meu avô. Meu tio mesmo tinha o dom da poesia, quis cantar, mas meu avô proibiu.

Ouvi cantoria em um programa que tinha na Rádio Clube de Pernambuco, isso em 1955, 1956… Ouvia Otacílio Batista - autor daquela música (começa a cantar) “Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor”, que a Amelinha gravou - e José Alves Sobrinho - outro cantador extraordinário. Fui tendo a ideia do que era rimar. Não sabia o que era sextilha, mote. Eu, José - meu irmão mais velho - e alguns primos íamos trabalhar na roça e a gente inventava de cantar. Todos eles sabiam fazer verso da maneira que eu fazia, mas só eu me atrevi a entrar na cantoria. Em 1962, na Rádio Educadora do Crato, começa um programa feito por João Alexandre e Pedro Bandeira (1938-2021, poeta, cantador e mestre da Cultura reconhecido pelo Programa Tesouros Vivos, do Governo Estado do Ceará), que àquela época foi meu maior ídolo. Ouvia todo dia, todo dia. O primeiro cantador que ouvi foi o avô desse Pedro Bandeira, chamado Manuel Galdino Bandeira, um gênio, um camarada que cantou por 50 anos na maioria das vezes sozinho - cantador cantou sempre de dupla, mas ele era tão extraordinário que o povo não sentia falta de um parceiro. Quando eu tinha seis anos, ele cantou na casa de meu avô. Pronto, foi essa a primeira cantoria que assisti ao vivo.

O Mestre da Cultura, cantador, violeiro e poeta Geraldo Amâncio(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMAO Mestre da Cultura, cantador, violeiro e poeta Geraldo Amâncio

OP - E qual foi a primeira vez que o senhor se apresentou de fato?

Geraldo - Surgiu uma cantoria no Sítio Campos, no município de Baixios, com o Pedro Bandeira e o irmão dele, Chico Bandeira, em 29 de junho de 1963. Fui assistir. O Pedro foi o cantador mais aplaudido, mais querido. Naquela época não tinha som, não tinha nada, e os cantadores subiam na mesa. Cada apresentação que a gente faz dura cinco, seis, oito minutos, e a gente chama “baião”. O Pedro cantou dois ou três baiões, desceu da mesa e se deitou, com dor de cabeça. Ficou aquele povo sem saber o que fazer. Eu estava lá com um senhor chamado Zé Moraes, casado com a irmã de meu pai, e ele disse pro povo: “Olha, ando com um rapaz que inventa de fazer verso”. Conheci os dois lados da vida muito cedo: meus avós maternos eram pobres como Jó e meu avô paterno era tido como rico porque morava num lugar onde só tinha pobre, era conhecido porque comprava gado. Ele serviu de senha. “Você é de qual família?”, perguntavam, e eu dizia: “Sou neto de Manoel Amâncio!”. Me botaram para cantar com o Chico Bandeira. Fui muito aplaudido. Não sei nem se foi pelo que eu produzi, foi talvez pela novidade e pela minha idade, à época eu tinha 17 anos, por aí.

"Pra mim foi um medo e uma alegria grandes. Cantei com ele, e quando terminou ele disse: “Continue que você tem muito futuro”. Aquilo pra mim foi uma profecia, né?"Geraldo Amâncio ao narrar a primeira vez que cantou com o poeta Pedro Bandeira

OP - O senhor considera esse momento o marco inicial da carreira?

Geraldo - Mais ou menos. Vou explicar. Quando se terminava a “dibuia” do feijão, tinha que ter uma pessoa pra tocar música. Eu tocava violão e cantava umas besteiras, o povo dançava (risos). Minha grande curiosidade era ver a sequência dos dedos (dos cantadores) nas cordas da viola. No dia seguinte da cantoria (de em 29/6/1963), mudei as cordas do violão pra afinação de viola e comecei a cantar. Meu tio poeta me ouviu e me chamou, “quero dar uns treinos em você”, aí foi me ensinar, orientar. O certo é que no dia 5 de janeiro de 1964 - é aí que quero dizer que foi o pontapé - fui à uma segunda cantoria com o Pedro Bandeira numa vila chamada Arrojado, distrito de Lavras da Mangabeira. Na primeira, ele tinha dormido, não me viu cantando. Na segunda, quando ele desceu da mesa meia-noite, disseram: “Olha, aqui tem o neto de Manoel Amâncio, vamo botar pra cantar!”. Botaram, ele me ouviu e disse: “Quero cantar um pouco com esse rapaz”. Pra mim foi um medo e uma alegria grandes. Cantei com ele, e quando terminou ele disse: “Continue que você tem muito futuro”. Aquilo pra mim foi uma profecia, né? Dita por ele, é como se o Papa dissesse que você vai ser padre. É esse que considero o marco.

Foi o maior incentivo que tive além do meu tio, com quem, daí, comecei a cantar. Mas você veja como é a vaidade humana. Pedro Bandeira foi o primeiro cantador que ouvi falar no rádio, antes os locutores não deixavam, mas ele falava. (Depois da cantoria) Fiquei no pé do rádio pensando: “Só digo que ele gostou mesmo da minha cantoria se falar em meu nome”. E não é que falou? (risos) Ele disse: “Quero mandar um abraço aqui para o rapaz que está começando e tem muito futuro, neto de Manoel Amâncio!”. É uma história longa, meu avô chegou a cantar com o avô dele, em 1924, e eu cantei com ele 40 anos depois!

OP - Foi também em 1964 que o senhor saiu “para o mundo”, tendo se mudado para a Paraíba. Como foi expandir os horizontes?

Geraldo - Meu pai queria que eu fosse um braço da roça. Sair de casa foi minha grande luta. Eu disse: “Olhe, vou sair e com o que ganhar eu pago um trabalhador pra ficar no meu lugar”, aí saí para o Iguatu para participar de um programa na Rádio Iracema de Iguatu, do cantador Antônio Maracajá. No dia 18 de fevereiro de 1964, saio com viola, mala e tudo e vou morar na casa de um cidadão chamado Chico Batista. Volto pra casa com um mês sem ter feito nenhuma cantoria, aí meu pai: “Eu disse que isso não tem futuro, rapaz, vai sair mais não!”.

Foi uma luta de novo, saí meio escondido, minha mãe vendeu umas galinhas… (pausa, emocionado) Desculpa, é uma emoção muito forte. Fui novamente pra Iguatu e lá aparece um cantador, conhecido como Azulão, que foi o primeiro que me chamou pra viajar. Foi a primeira vez que realmente ganhei dinheiro, fomos para Baixio de Nazaré, que hoje se chama Coronel João Pessoa. Voltei pra casa com um mês ou dois, trouxe dinheirinho pro velho, comprei meu primeiro paletó - cantador naquele tempo tinha que ter um paletó! (risos) Tinha até um mote: “Doido, crente e cantador só andam de paletó” (risos mais fortes).

De volta em Iguatu, fiz um programa na rádio, mas ouvia falar que cantador bom ou tinha que ser paraibano ou aprender a cantar na Paraíba. Sempre tive muita vontade de aprender. Quando por volta de 1966 surgiu a rádio Alto de Piranhas, que cobria aquela região toda, deixei o programa em Iguatu e fui morar em Cajazeiras (município a 468 km de João Pessoa). Em 1968, Pedro Bandeira promove o primeiro festival de repentistas em Juazeiro do Norte e fui de dupla com Sebastião da Silva. Éramos a dupla mais nova, mas ganhamos o primeiro lugar. (O prêmio) era uma violinha pequena, de ouro, e saiu a notícia no rádio que eu tinha ganhado. Quando eu chegava nas cantorias, era “não trouxe a viola de ouro, não?” (risos). No ano seguinte, em 22 de fevereiro, me casei e fiquei morando em Juazeiro, época em que fiz um programa com Pedro Bandeira durante muito tempo.

" A gente citava os nomes mais famosos (do regime), falava que tinha que voltar a democracia, que tinha que ter anistia total e irrestrita."Geraldo sobre a caravana dos cantadores que percorreu o Brasil em campanha pela anistia

OP - De 1964 até 1985, ficou instaurada a ditadura militar no Brasil, e sei que em 1979 o senhor participou de uma caravana com cantadores, emboladores e repentistas que rodou o Brasil pedindo anistia irrestrita. De que forma se deu esse envolvimento?

Geraldo - Um italiano chamado Giuseppe Baccaro (1930-2016), que era marchand e muito chegado da cantoria e do cordel, organizou uma viagem por 16 ou 17 capitais. Nós éramos umas 20 duplas de repentistas, vaqueiros, aboiadores, emboladores, tinha tudo, pedindo anistia. O pior foi o seguinte: pra falar mal do governo, a dupla encarregada era Ivanildo Vila Nova (cantador e repentista que formou dupla com Amâncio a partir dos anos 1970) e eu. Andamos muito perto de apanhar. Naquele tempo o SNI (Serviço Nacional de Informações, órgão de espionagem da ditadura) era uma coisa muito forte. Em Belém, no Theatro da Paz, estávamos só eu e Ivanildo fazendo apresentação, aí quando saímos um cara disse: “Vocês sabem quem eram aqueles dois que tavam lá em frente de paletó e gravata aplaudindo vocês? Agentes do SNI”. Não dormi mais de noite, mas graças a Deus a gente conseguiu sair fora. A gente falava muito forte. Os outros cantavam todo e qualquer assunto, mas eu e Vila Nova era só pra falar mal, dizer que era uma ditadura que matava gente. A gente citava os nomes mais famosos (do regime), falava que tinha que voltar a democracia, que tinha que ter anistia total e irrestrita.

Geraldo Amâncio, poeta, escritor e repentista trocou a roça pela cantoria (Foto: Fernando Sá, em 14/03/1994)
Foto: Fernando Sá, em 14/03/1994Geraldo Amâncio, poeta, escritor e repentista trocou a roça pela cantoria

OP - Numa correlação, vi que o senhor vem postando nas redes sociais uma série de produções que abordam temas ligados à pandemia, como a fome ("A covid-19/ trouxe fome e sofrimento,/ só existem dois remédios/ pra acabar esse tormento,/ pra covid é a vacina/ e a fome só se elimina/ com doação de alimento") e a demora na vacinação ("Mais de um bilhão lá na China/ já se encontram vacinados,/ nós a falta de vacina/ choramos desesperados./ Esse projeto atrasado/ pra vacina aparecer,/ não sei quem é o culpado,/ quem souber pode dizer"). Como o senhor encara o papel social da cantoria?

Geraldo - Tenho colocado muito sem falar tudo que gostaria porque hoje essa polarização está uma coisa muito triste. Dia desses, pus uma opinião falando dessa miséria, dessa tristeza, e sempre tem as piadas do lado extremado, sabe? Digo que não voto em esquerda nem em direita, voto em pessoas. Tenho minha escolha, mas não digo abertamente pra não arrumar um bocado de antagonista e de inimizade, porque a coisa tá muito triste. Olha, tenho 75 anos, já vi paixões enormes em eleições para presidente da República: Jânio Quadros (presidente entre janeiro e agosto de 1961, renunciou ao cargo), o “homem que ia tirar toda a sujeira do Brasil”, Collor de Mello (presidente entre março de 1990 e dezembro de 1992, sofreu impeachment) o “caçador de marajá”... Deu no que deu, daí você tira. Sobre a história de religião envolvida na política, fiz até uma estrofe: “Oração sem caridade / Para Deus não tem valor / Quem só prega por dinheiro / Por mais que ore ao extremo / No julgamento supremo / Não passa de um caloteiro / Falso profeta, embusteiro / Mal condutor, explorador / Com discurso enganador / Com palavra sem verdade / Oração sem caridade / Para Deus não tem valor”. Estou fazendo muito e vou fazer sempre.

"Questiono o seguinte: por que é que pode ter uma reunião de 12 mil motoqueiros e não pode ter apresentação de artista, com cadeira separada, com 50, 100 pessoas?"Geraldo, ao criticar a ausência de apresentações para os artistas

OP - Outra opinião incisiva do senhor é sobre algumas atividades serem liberadas, mas rodas de viola ou de cantaria não serem. De que forma o contexto da pandemia impactou o senhor?

Geraldo - Lamento mais pelos outros. Não é que eu seja tão bem situado financeiramente, mas fui contemplado com a Lei Aldir Blanc - que, é bom lembrar, não é coisa e nem presente do Governo Federal, foi uma lei votada pelo Congresso. Questiono o seguinte: por que é que pode ter uma reunião de 12 mil motoqueiros e não pode ter apresentação de artista, com cadeira separada, com 50, 100 pessoas? Acho um absurdo. Artistas principalmente do interior, que não tem produtor cultural, não foram contemplados, não. Até, meu Deus, por falta de organização. Não tem uma entidade que cuide, pessoas que entendam mais. Tem gente da arte passando fome. A maioria desse pessoal é autônomo, não tem e não sabe fazer outra atividade.

OP - O poeta e cantador Pedro Bandeira, citado pelo senhor, faleceu em agosto de 2020 por complicações de saúde que já vinha tendo. De que forma o senhor encarou essa perda?

Geraldo - A contribuição que Pedro Bandeira deu para a cantoria foi uma coisa enorme, tão grande, principalmente pelo espaço nobre que ele teve na rádio. Naquele tempo, eu ouvia assiduamente, religiosamente, o programa dele. Na altura em que eu morava em Cajazeiras, fui visitar João Pessoa, que foi a primeira capital que conheci, e lá não pegava (a emissora de rádio) na primeira onda, como se diz, aí peguei um rádio portátil e ouvi, em junho de 1967, Pedro Bandeira dizendo: “Atenção Nordeste, atenção Brasil, acaba de falecer o cantador mais famoso de todos os tempos, Cego Aderaldo” (poeta, cantador e músico cratense falecido em 29 de junho de 1967). Nunca me esqueci disso. Pedro Bandeira era de uma criatividade fantástica, todo dia tinha um assunto diferente para cantar. Isso deu muita vida à cantoria. Dos anos 1950 até 1960, ela andou muito em baixa, mas esse programa fez a cantoria se altear de novo, brilhar.

OP - O senhor rende muitos elogios a seus pares. O que forma, na sua avaliação, um bom cantador?

Geraldo - Ninguém cantou mais bonito e mais do que Pedro Bandeira. Mas é preciso muito cuidado, é muito complexa a história de julgar cantoria. Tenho as minhas avaliações. Se perguntarem qual o cantador mais perfeito que existiu, digo Dimas Batista. Os maiores repentistas que conheci foram Lourival Batista, Pinto do Monteiro, Zé Catoto. Pedro Bandeira em tudo cantava muito. Tivemos a perda há uns três anos do Louro Branco, cearense de Feiticeiro, distrito de Jaguaribe, que foi o maior repentista da minha geração. Você veja como é difícil julgar: ele não foi o maior cantador, mas foi o maior repentista. O cantador se mede, vamos dizer, pela espontaneidade, pelo conhecimento que tem de dominar todo e qualquer assunto. Ele pode buscar (temas) muito longe e trazer pra cá. Já o grande repentista é aquele que canta o momento. Se o assunto é pandemia, por exemplo, o cantador não muda mesmo se cair um poste. O repentista é o que vai cantando e é capaz de deixar um assunto pra falar de uma coisa do momento. Posso até dar um exemplo. Um dia eu estava cantando com o Louro Branco e tinha um oftalmologista assistindo que só aplaudia e dava risada, mas não dava um centavo. Termino dizendo: “Parece que esse doutor não ajuda repentista”. Quando deixo isso, o Louro Branco diz “Ele é um grande oculista / Um grande mestre, eu não nego / Sendo pra ganhar dinheiro / Faz um cego ver um prego / Mas na hora de gastar / Até ele fica cego”. (risos)

OP - Em outro assunto, o senhor já viajou para o exterior diversas vezes levando a cantoria. Como ela chega nos outros países?

Geraldo - Lá vem história com o Pedro Bandeira de novo. Em 1995, surgiu um convite pra que eu fosse com ele fazer apresentações no Museu de Etnologia de Lisboa. Fomos a primeira dupla de cantadores que atravessou o Atlântico para se apresentar. Depois surgiram outros convites, já estive nove vezes na Europa, me apresentei em um festival mundial nas Ilhas Baleares (arquipélago e província independente e autônoma da Espanha), ministrei palestra na Universidade de Coimbra… Estávamos em 2020 com uma viagem programada para Macau e para a China, que foi adiada. Estive em Israel e na Palestina pesquisando cantoria. Não encontrei repentista em Israel, mas encontrei na Palestina. A cantoria, João, é uma arte universal. Nas Ilhas Baleares, falam catalão e espanhol. Só eu cantava em português, então imaginei que ia ser o excluído da turma, mas, como sempre digo, para onde vou um anjo me acompanha ou já tá na frente. Para minha grande surpresa e alegria, depois que cantei na primeira noite, o secretário de Cultura de lá me disse que eu iria apresentar as atrações e que podia me escalar para me apresentar a hora que quisesse.

OP - O senhor mencionou ter encontrado repentistas na Palestina…

Geraldo - Encontrei. Foi uma viagem que fiz com a minha mulher e a gente aproveitou para o turismo religioso e a minha pesquisa. Em Israel, procurei e não encontrei. Quando atravessamos para a Palestina, perguntei ao guia se tinha repentista lá. Ele perguntou o que era isso, expliquei mais ou menos e aí ele: “ah, é um negócio que canta desafio?”. Me arrepiei todinho. “Existe e eles parecem com você!”. Não deu tempo de encontrá-los, mas ele me arrumou um CD. O maior dom de um poeta é a métrica e, mesmo que eu não entenda o que eles tão cantando, entendo que eles são acompanhados por um instrumento de percussão - o ritmo é mais parecido com a nossa embolada (vocaliza e batuca) - que dá a mesma métrica. Foi a coisa que mais me encantou.

OP - É a poesia que leva à cantoria ou é ao contrário?

Geraldo - A poesia pode estar em qualquer artista. A cantoria depende do meio. No meu caso, o meio foi determinante. É claro que, com a poesia, se nasce. Estou falando da poesia rimada, cantada, metrificada, não a poesia “tinha uma pedra no meio do caminho” (faz referência ao poema “No meio do caminho”, publicado em 1930 por Carlos Drummond de Andrade). Falo da poesia de Castro Alves (poeta baiano nascido em 1847 e falecido em 1871) e Augusto dos Anjos (poeta paraibano nascido em 1884 e falecido em 1914). Por que Augusto dos Anjos, sendo paraibano, não foi cantador? Porque nasceu num meio de muita cultura, o pai era um homem rico, foi pra faculdade, fez direito, essa coisa, além de que é da região do litoral. A mesma coisa com Castro Alves, na época dele não tinha cantador na Bahia. A poesia se manifesta dependendo do lugar que você habita. Se tivesse nascido no Rio de Janeiro, eu, no máximo, seria letrista de música ou escritor. Vou fazer uma comparação meio doida: se o Chico Buarque tivesse nascido onde Geraldo Amâncio nasceu, com toda a infância e juventude povoadas da cantoria com os maiores artistas, a poesia que ele aplica nas letras, aplicaria na cantoria, tenho certeza. É isso: não é a cantoria que vai para a poesia, é a poesia que vai para a cantoria - ou para outros segmentos.

OP - Existe uma ideia que as culturas ditas “popular” e “clássica” são diferentes, até opostas. De que forma o senhor enxerga a relação entre as duas?

Geraldo - Em 711 d.C., os mouros chegaram na região ibérica, onde permaneceram por mais de 600 anos, e trouxeram um instrumento chamado “rabab”, que é, conforme pesquisa, o ancestral de todos os instrumentos de corda. A cantoria e a poesia rimada vêm de muito tempo, são milenares, nos antigos califados árabes já existia. O “popular” começa com homens cultos: por exemplo, Dom Dinis (Dinis I de Portugal, Rei de Portugal e do Algarve de 1279 até 1325) era trovador. O que se chama popular nasceu no meio das pessoas cultas. Aqui no Brasil acontece a mesmíssima coisa. Há dois poetas populares que eram homens cultos: Gregório de Matos (poeta baiano nascido em 1636 e falecido em 1696), que fez Ciências Jurídicas em Coimbra, e Caldas Barbosa (poeta fluminense nascido em 1739 e falecido em 1800), que era padre, dominava o latim. O que me deixa muito triste é quando se diz, por exemplo, que Manuel Bandeira (poeta pernambucano ligado ao modernismo, 1886-1968) começou fazendo poesia rimada e metrificada, mas depois “evoluiu”, como se nós fôssemos involuídos. Temos poetas fantásticos da linha da poesia moderna, mas creio mais nele quando ele sabe fazer as duas coisas.

OP- Como o senhor avalia o estado de renovação da tradição da cantoria no Ceará?

Geraldo - Cantoria é como o circo, sempre houve a profecia que vai se acabar, mas não acaba nunca. Temos novas gerações, depois de mim já vieram no mínimo umas três, de gente que canta muito bem. Na geração que antecedeu a minha, o cantador que chegava aos 50 anos era esquecido, excluído. Estou com 75 anos e cito o Vila Nova também, pra quem outro dia eu disse: “Nós estamos com mais de 20 anos de saldo”. Nossa agenda é cheia como se tivéssemos 20 e poucos anos. Outra coisa é que todo cantador antigamente era da região rural, mas hoje temos cantadores urbanos. Por exemplo, um rapaz que trabalha comigo, o Guilherme Nobre, é aqui de Messejana. Você veja a influência: por quê ele se descobriu poeta? Eu fazia um programa de TV - por 19 anos, 10 na Jangadeiro e 9 na TV Diário - e ele, vendo, descobriu-se poeta e cantador. Não vai acabar tão cedo. A cantoria não acaba porque para quem torna-se cantador, cantar vira um ofício, uma necessidade. Mesmo que, se por acaso, perdêssemos o público de cantoria, ela não acabaria ainda porque os cantadores cantariam uns para os outros.

OP - Recentemente, o Nordeste se “popularizou” pelo País muito por conta da vencedora do reality Big Brother Brasil, uma nordestina que falava muito da região e usava elementos como cacto e chapéu de cangaceiro. Por vezes, o olhar das outras regiões para cá acaba estereotipado, fetichizado. Como o senhor avalia esse relação do País com o Nordeste?

Geraldo - Como cearenses, nós temos uma espécie de estigma. Viajei esse Brasil quase todo. Se eles zombarem de fome no Nordeste, zombam do cearense. A fome que o Ceará passa, passa também o Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, Piauí, mas a marca, o estigma, é em cima do cearense. Eu ia num avião pequeno fazer apresentação em Santarém e passamos por cima de um rio muito grande, aí o piloto perguntou de onde a gente era. Quando disse Ceará, ele disse: “eita, rapaz, então você nunca tinha visto água desse tanto!”. Respondi “lá tem mais!” e ele “onde?”. “No Atlântico, que vocês não têm aqui”. Ele se calou. Num churrasco no Acre, falaram: “Aproveita que lá vocês não comem carne!”. Isso dá uma dor danada na gente. Cheguei a fazer uma cantoria numa cidade do interior do Paraná e pediram pra gente não cantar numa toada que fosse muito “penosa”.

Sobre a história do se caracterizar, começou com Luiz Gonzaga. Se você perguntar quem inventou o baião, se diz que foi ele, mas não foi, o baião é da viola. Se você ler “Dona Guidinha do Poço” (romance do escritor cearense Oliveira Paiva escrito em 1892, mas somente publicado em 1952), o nome “baião” está lá. Os cantadores antigamente usavam um tampo de couro perto das cordas para bater assim (faz a batida), que é a pancada do baião. Em 1980, eu estava fazendo um trabalho numa exposição em Minas Gerais e a atração principal era o Luiz Gonzaga, a gente chegou a cantar junto. No outro dia, ele me viu, conversamos e ele disse: “Poeta, esse baião que eu toco tirei da viola de vocês! Também sou cantador, só que eu sei ganhar dinheiro e vocês não sabem”. Isso aqui é uma dedução: quando Luiz estava no 23 BC (23º Batalhão de Caçadores) como soldado, o Cego Aderaldo estava no auge da cantoria e se fazia acompanhar, além da viola, por rabeca, instrumentos de percussão. Creio que foi aí onde Luiz Gonzaga ouviu, talvez, a primeira cantoria. Depois, eles tornaram-se tão amigos que, quando o Cego estava pobre, o Luiz fez um show em prol dele. Acho que foi daí que ele viu a pancada do baião. Agora, tem isso: sem ele, o baião não seria tão famoso.

"Meu grande sonho é que o cordel e a cantoria entrassem nas aulas nas redes de ensino dos municípios e do Estado."Geraldo Amâncio, cantador, poeta, repentista

OP - Em 2018, o senhor recebeu o título de Tesouro Vivo da Cultura pela Secretaria de Cultura do Estado e o de Notório Saber em Cultura Popular pela Uece. De que forma esse reconhecimento impactou na sua trajetória?

Geraldo - Você acredita que dificilmente eu lembro? Inclusive meu produtor fala “rapaz, parece que você não valoriza” (risos). É por agora que eu estou despertando mais. Mas me deu uma alegria muito grande. Meu grande sonho seria ser professor e não tive essa possibilidade antes, mas com o título eu cheguei a ministrar palestra, aula, em três colégios do Estado. Isso me deixou muito feliz. Pelo menos os mestres da cultura são os que estão sofrendo menos (com a pandemia) devido a esse apoio, ajuda muito. É de muita validade. Vou cuidar de dizer mais que sou mestre! (risos)

OP - Que demandas da cantoria o senhor ainda pretende ver cumpridas?

Geraldo - Meu grande sonho é que o cordel e a cantoria entrassem nas aulas nas redes de ensino dos municípios e do Estado. Veja, até nos vestibulares a gente só veio entrar nas questões depois do Patativa do Assaré, que ficou muito famoso. Meu grande sonho seria esse. Com isso, podíamos descobrir vocações. Tenho uma boa nova sobre essa pergunta: em Tauá, fui convidado por Domingos Filho (ex-vice-governador) para fundar uma escola de poesia, o que está me deixando superfeliz, já formatamos o modelo. Tudo que tem que permanecer tem que passar pela escola ou ficar nos livros, senão fica sem raiz. Outra coisa também é que uma grande dificuldade nos projetos que fazemos é a falta de cobertura financeira. O município sempre tem verba para chamar banda de forró e pagar R$ 500 mil, mas não tem R$ 20 mil para fazer um festival de repentista ou com 20, 30, 40 cantadores. Os poderes públicos deveriam se voltar mais para a cultura popular, porque há uma necessidade muito grande.

OPOVO Online


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